“E deixa os portugais morrerem à míngua... Minha pátria é minha língua. Fala Mangueira...”
Surpreendentemente, ainda me espanto ou com a ignorância ou com a leviandade da grande mídia brasileira, não sei dizer qual o caso, não sei dizer o pior. A “abordagem” dada à leitura do livro didático que, na última semana, foi execrado em cadeia nacional por um grande telejornal pode indicar duas coisas:
(1) o total desconhecimento de qualquer discussão lingüística que tenha sido realizada em meio acadêmico nos últimos 60 anos (jornalistas fazem faculdade, não?) somado a uma preguiça generalizadora de ao menos tentar realizar uma leitura crítica que ultrapasse meia página descontextualizada de livro;
(2) a edição de falas e imagens, com vistas à manipulação da informação para indução da opinião pública, de acordo com os interesses políticos e/ou de ocasião do(s) grupo(s) que detém o poder de enunciar para milhões de brasileiros.
Ou acredito que tanta ortodoxia é fruto da ignorância (leia-se: falta de conhecimento); ou acredito que é apenas máscara para interesses escusos. Explico. E sugiro.
SOBRE AQUELES DO GRUPO(1):
Há pelo menos 15 anos os livros didáticos já incorporam a necessidade de um ensino plural, que considere o falante em sua totalidade, que não valorize o decoreba, a nomenclatura pela nomenclatura (leia-se: metalinguagem), que desenvolva competências e habilidades, em vez de um conhecimento descontextualizado e enciclopédico. Na universidade, já se diz isso há uns 30. Quando estava na graduação, li um texto escrito pelo professor Wanderley Geraldi em 1984, que já propunha em detalhes uma reformulação das bases curriculares como conhecíamos, reformulação que culminou com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1997.
Ou a imprensa está MUITOOOO atrasada, ou simplesmente tem preguiça de ler. As primeiras publicações da Sociolinguística (área de estudos da linguagem que considera cientificamente as variações) são dos anos 60!
E que fique claro:
Nenhum cientista da linguagem, nenhum professor linguisticamente esclarecido JAMAIS proferiu ou proferirá essas palavras: “Podem usar qualquer palavra, frase, porque agora vale qualquer coisa”, como cheguei a ler por aí. A discussão que se faz é a de que a Gramática Normativa é sim um instrumento de exclusão e de poder, que as diferenças são muito mais sociais do que linguísticas, já que “UMA VARIEDADE DE LÍNGUA VALE O QUE VALEM SEUS FALANTES”, como já disse em 1988 (!) Maurício Gnerre. Nessa direção, uma pessoa que pronuncia a palavra “para”, realizando a contração e produzindo foneticamente “pra”, certamente não sofrerá a estigmatização que recairá sobre outra que, ao utilizar a palavra “árvore”, produza foneticamente “arvri”. Linguisticamente, o fenômeno é um só: houve uma queda de vogal no meio da palavra; socialmente, não. Socialmente, atribuímos valores distintos a cada um dos falantes, já que quem pronuncia “arvri” demonstra ser de uma classe economicamente desfavorecida que não teve acesso à escola, ao contrário de quem pronuncia “pra”. (A propósito, eu tenho doutorado e pronuncio “pra”).
A discussão do livro nunca foi “então vamos oficializar o oba, oba, agora vale qualquer coisa”. Não é nada disso. Faz parte do papel do professor de português oferecer a seus alunos a norma gramatical que permitirá que participem linguisticamente de ambientes diversos e situações múltiplas. Mas o professor que não considera (ou que trata com ironia ou escárnio) as variações dos alunos em aula "assassina" sua autoestima e contribui para que eles saiam da escola. Esse professor presta um desserviço à Educação e a seu país, como prestou a referida reportagem no canal de TV.
Sugestão-recado ao grupo (1): “O preconceito linguístico”, de Marcos Bagno. Livrinho de linguagem super clara, para qualquer área. Não custa 20 reais.
SOBRE AQUELES DO GRUPO(2):
Se você acredita em imparcialidade, escreva uma carta para o Papai Noel pedindo de presente o carro mais caro do ano. As chances de você receber uma informação imparcial pela imprensa são as mesmas de ganhar do Papai o seu carro. E isso nem tem a ver com o fato de a imprensa ser “mal-intencionada” (pelo menos nos casos em que ela descaradamente não mente).
Vou usar um exemplo. Supondo que eu esteja no governo de um estado e seja a maior acionista de um grande jornal do mesmo estado, não é de se esperar que as publicações do meu jornal sejam à minha administração um pouco mais favoráveis? Isso acontecia no Correio Braziliense durante as denúncias no Governo Arruda/Paulo Otávio. Nunca li tanto “suposto isso”, “suposta aquilo” em algumas reportagens (risos). Perverso? Não, até compreensível. Eu também não escolho a minha pior foto como foto principal do facebook. Mas o limite entre a dissimulação e a manipulação mentirosa e descarada em alguns meios é muito tênue. Quem não se lembra do caso da “bolinha de papel” nas últimas eleições? Sempre digo a meus alunos
NUNCA COMPREM A PRIMEIRA VERSÃO. Desconfiem, indaguem sempre e se perguntem: A QUE INTERESSES ISSO SERVE?
Boa parte dos brasileiros só “escuta” o jornal, só lê as manchetes. É praticamente impossível desfazer o alcance de um “equívoco” de leitura (tantas vezes proposital) noticiado pela grande mídia.
Voltando à polêmica do livro, sempre depende do interesse, certo? Neste caso, eu sinceramente não tenho informações que me permitam saber qual. Mas sendo bem generalista: Eu quero um aluno que pense, que decida, que atue, que consiga assistir a um telejornal e perceber que aquele canal manipula, que a crítica do “comentarista estrela “é idiota, que a “informação imparcial” é mito e o interesse subjacente é quase sempre político-econômico, ou eu quero que um aluno que, revestido pelo seu trauma e por sua baixa autoestima, continue se julgando incapaz e pouco inteligente, caracterizando como “lindooooo” tudo aquilo que apareceu no PlimPlim?
Mas eu tenho esperanças, sabe? Tenho esperanças que, com a democratização da internet, possam chegar às pessoas informações e leituras que transcendam os 4 minutos editados pelo canal e dispostos no horário nobre. Tenho esperanças que ao assistirem a uma entrevista inteira, as pessoas consigam perceber que quando alguém retira uma declaração do contexto pode atribuir a ela qualquer tom.
Tenho esperanças. Tenho. Depende é da gente*.
[*Sim, eu podia (q vá pro espaço o futuro do pretérito, o hífen e o “para o”) ter usado nós do lugar do “a gente”, mas num tô a fim. Eu tbém podia ter usado “estou”. E evitado a contração. Usar uma forma ou outra não faz de mim uma pessoa mais ou menos inteligente só faz de mim uma pessoa atenta aos contextos em que utilizo essas formas linguísticas.]
Sugestão-recado ao grupo (2): Que coisa feia... A gente percebe. E, cada vez mais, a democratização do ensino superior e a democratização da internet farão com que mais e mais pessoas percebam. Pode demorar, mas é inevitável. Eu sei.
Elenita Rodrigues
http://acasosafortunados.blogspot.com/2011/05/polemicas-o-mec-o-livro-e-dramatica-da.html
Rosana dos Santos e Juliana Cardoso(não tem cadastro)