Lúcia Castello Branco* | |||||
“Vamos parar com essa felicidade aí!”. Essa exclamação, proferida por uma diretora que subitamente decide abrir a porta de uma sala e interromper a alegria desmedida das crianças, pode, à primeira vista, surpreender. Afinal, espera-se que, sobretudo na sala de aula de uma escola primária, a felicidade tenha algum lugar. Entretanto, todos sabemos que não é essa a realidade corriqueira de nossas escolas. Ali, exatamente ali onde a felicidade deveria reinar soberana, o que impera, silenciosamente, é, em geral, uma espécie de tristeza comedida que costumamos denominar disciplina. Esse não é o único estranhamento que nos causa a leitura de Uma Professora Muito Maluquinha, de Ziraldo (Melhoramentos, 1995). Estamos, afinal, no universo dos estranhamentos, já há alguns anos instaurado pelo “menino maluquinho” criado pelo autor. E, nesse universo dos absurdos e nonsenses, uma escola e uma professora podem até se tornar sinônimos de felicidade. Se formos ao Aurélio, podemos, de certa forma, mapear o percurso da palavra de que Ziraldo tão bem se apropria, explorando suas múltiplas conotações. Afinal, maluco quer dizer “indivíduo apalermado”, mas também “doido”, que, por sua vez, quer dizer “alienado”, “demente”, “insensato”, mas também “arrebatado”, “extravagante”, “apaixonado”, “entusiasmado”. É dessa extravagância, sobretudo desse entusiasmo, que Uma Professora Muito Maluquinha vem nos falar. Esse entusiasmo — esse deus dentro de si —, elemento fundamental a qualquer educador, é justamente o que move as ações, as transgressões e as subversões dessa professora maluquinha. Em nome desse entusiasmo, ela oferecia prêmios a quem lesse mais depressa, ou convocava um júri de alunos para julgar as infrações de seus colegas, ou passava estranhos deveres para casa (como descobrir onde se situavam cidades inexistentes), ou ainda distribuía notas como quem distribui doces às crianças, abolindo o zero, é claro, porque “zero não existe”. Por isso ela é maluquinha, porque ousa devolver à sala de aula e aos alunos o entusiasmo que deles é, comumente, roubado. E por isso ela é objeto de fantasia e de devaneio por parte dos alunos e, assim, é, por exelência, inimaginável, dada sua intangibilidade de objeto de desejo. Na nossa imaginação ela entrava voando pela sala (como um anjo) e tinha estrelas no lugar do olhar. Tinha voz e gesto de sereia e vento o tempo todo nos cabelos (na nossa imaginação). Seu rosto era solto como um passarinho. Ela era uma professora inimaginável. Anjo, estrela, sereia, passarinho, essa professora é também diabólica, pois ousa infringir as normas da escola e situar-se ao lado dos deuses. Afinal, em sua opinião, é o professor quem termina por acrescentar ao homem o “sentido que o completa”, ao proporcionar-lhe o desenvolvimento da capacidade de ler e de escrever. O homem nasce com visão, audição, olfato, tato e gustação. Mas não nasce completo. Falta a ele capacidade de ler e escrever como quem fala e escuta. É a professora que — como um deus — acrescenta ao homem esse sentido que o completa! Mas não nos apressemos em julgá-la rápido demais. Anjo, demônio, fada ou deusa, essa professora permanece imperfeita, mesmo aos olhos daqueles que a veneram: não sabe tudo, como querem os mestres em seu lugar de mestres, mas apenas o que lhe for suficiente para seguir seu desejo (a História e a Geografia para viajar pelo mundo); não está sempre atenta e responsiva, mas, às vezes, chega “na sala com um bico maior que o de um tucano”; não acerta sempre, mas possui a sabedoria daqueles que conseguem fazer do erro um outro caminho, um caminho possível. Quem será capaz de trilhar, com essa professora inesquecível, esses caminhos do erro e da errância de uma aprendizagem? “Do outro lado da mesa estamos ‘nós — Athos, Portos, Aramis, D’Artagnan e Ana Maria Barcellos Pereira, a chefe’. E, do outro lado do livro, estamos nós, leitores compactuados com esse ensino errante e entusiasmado, leitores desejantes dessa leitura do mundo a que somos convocados pela maluquinha, leitores apaixonados por essa escola em que a alegria e a algazarra têm lugar”. O livro de Ziraldo, escrita-homenagem a uma professora inesquecível, escreve-se também como uma celebração de um certo ensino, um ensino com que, em geral, sonhamos, mas que dificilmente praticamos. Porque se trata de um ensino difícil de se praticar. Não de um ensino difícil, mas justamente de um ensino que esbarra na dificuldade que consiste em abrir mão de uma posição de saber, para ocupar, com todos os riscos que essa atitude implica, uma posição de desejo, uma posição desejante. “Quando eu te vejo, eu desejo o teu desejo.” Assim diz a canção Menino do Rio, de Caetano Veloso. E não é exatamente esssa a dinâmica do desejo? O outro, que deseja, é capaz de me pôr a desejar também. Nessa “escola do desejo”, instaurada pela professora maluquinha, todos nós passamos a desejar. E aí cai por terra toda a falácia pedagógica em torno da chamada “motivação” ou mesmo da absurda “criação de desejos” nos alunos. Porque o desejo não se cria nem se impõe. O máximo que se pode fazer é abrir espaços em que ele possa se manifestar. Nesse sentido, o professor desejante já terá feito a sua parte. Por isso, nós, que estamos do outro lado da mesa, do outro lado do livro, desejamos os prêmios que a professora nos oferece, desejamos ler depressa como locutores de rádio, desejamos saber onde se encontra Kubakalan, a cidade inexistente. E por isso desejamos também as serenatas do outro lado do muro, a decifração da mensagem secreta, a fuga esperada ao final da história. Por isso desejamos o livro que, afinal, se oferece como uma homenagem não só à escrita e à leitura, mas também à história do Jornalismo, da Ilustração e da Editoração no Brasil, como nos revela o cuidadoso trabalho gráfico de Ziraldo em Uma Professora Muito Maluquinha. Todo ele composto de citações, recortes, bricolagens de ilustrações de Alceu Penna, de Millôr Fernandes e das antigas revistas O Cruzeiro, Tico-Tico, O Gibi, Era Uma Vez, Eu Sei Tudo, Revista da Semana e Careta. Entre as generalidades que a professora maluquinha costumava ensinar, há uma que se repete, subliminarmente, a cada página do livro: “que estarenamorado é estar em estado de amor: in amor”. Este livro de Ziraldo nos fala sobretudo de um sujeito enamorado de uma certa professora maluquinha, por sua vez, enamorada de um certo ensino e de um certo saber. Esse saber com sabor, teorizado por Roland Barthes em seus textos, é concretamente praticado por essa professora em sala de aula. Dele provamos nós, alunos, do outro lado da mesa. Dele provamos todos nós, leitores enamorados, do outro lado da história In amor ao ensino, à aprendizagem, à escrita e à leitura, à ilustração, à diagramação e ao texto. In amor ao livro, enfim. * Professora de Literatura da Fale/UFMG. Autora de A traição de Penélope (Annablume, 1994) e Júlia-Toda-Azul (Virgília, 1993); dentre outros. Viviane Silva |