A epistemologia genética de Jean Piaget
Por Luciana Maria Caetano
Jean Piaget nasceu na Suíça, na cidade de Neuchâtel, em 1896. Considerado uma criança precoce, desde cedo demonstrou interesse pela observação da natureza e pela organização sistematizada dos dados coletados, tanto que aos onze anos publicou um pequeno artigo científico a respeito de suas observações de um pássaro albino. Durante sua adolescência, trabalhou como assistente do diretor do Museu de História Natural de Neuchâtel, onde se interessou e estudou malacologia, chegando a publicar vários artigos sobre o tema, os quais tiveram notório reconhecimento pela comunidade científica.
Ainda na adolescência, influenciado pelo padrinho, que era professor de filosofia, iniciou os estudos, especialmente interessado pelas questões epistemológicas, que o acompanhariam por todo o seu trabalho como pesquisador. Entretanto, precisou escolher entre a biologia e a filosofia aos 18 anos, para definir a sua profissão. Optou pela formação universitária em biologia e aos 20 anos doutorou-se em malacologia. Piaget, desde a adolescência, desejou criar uma teoria biológica do conhecimento, e, perseguindo esse ideal, acabou buscando na psicologia da inteligência o meio termo para os seus interesses biológicos e epistemológicos. A psicologia é a ciência que investiga o comportamento humano e, portanto, investiga como o ser humano aprende e se apropria do conhecimento. Especialmente, admite o método experimental de pesquisa, fato que chamou a atenção de Piaget.
Piaget recebeu um convite para trabalhar no laboratório de Binet (já falecido), tendo como chefe Simon, que também não permanecia no laboratório. Através do trabalho de padronização dos resultados de testes de inteligência, Piaget encontrou um espaço de trabalho privilegiado, no qual pôde analisar não os resultados dos testes, mas a regularidade das respostas das crianças e a análise verbal do raciocínio delas. O encontro com a criança levou Piaget a retornar à Suíça (1921) trazendo consigo esses dados interessantes que dão início à construção da Teoria da Epistemologia Genética. Piaget elaborou um método próprio de pesquisa, o método clínico, e iniciou sistematicamente as investigações sobre o desenvolvimento infantil e a construção da inteligência.
O autor produziu uma vasta obra, com mais de 50 livros e 300 artigos. O seu trabalho teve rápida repercussão mundial, o que aconteceu quando Piaget ainda era jovem e publicava os seus primeiros livros, que representavam, na verdade, um esboço da Teoria Epistemológica Genética. Ele recebeu mais de 30 doutoramentos honoris causa, foi diretor do Instituto Jean Jacques Rousseau, na década de 1920, sub-diretor geral da Unesco na década de 1940, encarregado do Departamento de Educação da Suíça, professor universitário. Depois de mais de 60 anos dedicados à pesquisa, Piaget faleceu em Genebra em 1980. Os seus estudos foram replicados em um número significativo de países e a sua teoria ainda é utilizada como fundamentação teórica de pesquisas contemporâneas em psicologia em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil. Mas quais as principais ideias da Teoria Epistemológica Genética de Jean Piaget?
Epistemologia Genética
Inicialmente, é importante explicar o nome da teoria de Jean Piaget. As questões epistemológicas interessaram a Piaget desde sua juventude. A epistemologia é utilizada comumente para designar o que chamamos a teoria do conhecimento. O objetivo da pesquisa de Piaget foi definir, a partir da perspectiva da biologia, como o sujeito passaria de um conhecimento menor anterior para um nível de maior conhecimento. O problema que buscou solucionar durante toda a sua vida de pesquisador e que fez dele um teórico e autor conhecido e respeitado mundialmente, foi o da construção do conhecimento pelo sujeito, o que o fez, partindo da biologia, estudar filosofia, epistemologia, lógica, matemática, física, psicologia, entre outras ciências.
A formação inicial de Piaget na biologia influenciou todo o desenvolvimento da sua teoria, primeiramente, na perspectiva dos instrumentos científicos utilizados por ele como comprovadores empíricos, sempre baseados em métodos científicos rigorosos, isto é, possíveis de serem replicados. A outra influência da biologia na teoria piagetiana diz respeito à concepção de inteligência enquanto algo ligado à ação e à adaptação ao meio. A principal obra do autor que expõe esse assunto é o livro intitulado Biologia e conhecimento.
Tal modelo teórico explica o desenvolvimento da inteligência, tendo como conteúdo básico a ação do sujeito que interage com os objetos, construindo, a partir dessas ações, formas e/ou estruturas de inteligência que lhe permitem, cada vez mais, adaptar-se ao mundo em que vive. Os trabalhos do autor, na psicologia, conduziram-no à ideia da utilização do modelo lógico-matemático como meio de análise e instrumento de descrição do funcionamento e do desenvolvimento da inteligência.
Essa é uma das questões principais que fazem da sua teoria uma das referências para a compreensão do homem moderno. Não houve nenhum cientista depois de Piaget que elaborasse como ele um modelo formalizado, utilizando a linguagem lógico-matemática (o agrupamento e o grupo INRC) para explicar o desenvolvimento e a organização das estruturas cognitivas do ser humano. Trata-se de um modelo universal, refutável, hipotético-dedutivo, para explicar o funcionamento das estruturas mentais orgânicas (não passíveis de serem observadas), responsáveis pela inteligência e pela construção do conhecimento pelo ser humano.
Assim, compreende-se o motivo de Piaget ter pesquisado o desenvolvimento humano a partir do estudo e observação de bebês, crianças e adolescentes; por conceber esse estudo como o mais apropriado para as suas investigações a respeito da gênese do conhecimento e para demonstrar empiricamente e explicar o seu modelo teórico de construção da inteligência. Essa é, portanto, a explicação do título da sua teoria: Epistemologia Genética.
Para o autor, o conhecimento não pode ser simplesmente imposto pelo meio ao sujeito, como um reflexo das propriedades do ambiente (empirismo), tampouco estaria inteiramente pré-formado no sujeito, apenas aguardando a maturação (apriorismo). A outra novidade da sua teoria é a abordagem empirista que explica que a construção do conhecimento pelo ser humano é fruto das interações do sujeito com o seu meio. Nas palavras da professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Zélia Ramozzi Chiarotino, responsável por introduzir, do ponto de vista da Teoria do Conhecimento e da Epistemologia, as ideias de Jean Piaget no Brasil: “Resumindo: de um lado, temos o organismo com suas possibilidades; de outro, o meio que o solicita”.
Segundo a Teoria Epistemológica Genética, conforme surgem solicitações do meio, as estruturas da inteligência vão se construindo e, a partir de novas solicitações, o sujeito tem a possibilidade de reorganizá-las, vivenciando constantes mecanismos de assimilação de novos objetos a esquemas já existentes e mecanismos de ampliação do conhecimento denominados acomodação. O resultado das sucessivas assimilações e acomodações é chamado por Piaget de equilibração (conceito central da sua teoria construtivista do conhecimento). Assim, quando as estruturas que o sujeito já construiu não lhe permitem assimilar um novo objeto de conhecimento, isto é, determinado objeto é resistente, provoca uma perturbação no sujeito, o desequilíbrio é desencadeado.
Para o autor, o recém-nascido traz consigo condições de vir a se tornar inteligente e, conforme age sobre o mundo, constrói estruturas que lhe permite cada vez mais se adaptar às novas situações, de maneira a construir estágios sucessivos de desenvolvimento. Uma das principais tarefas da Teoria da Epistemologia Genética foi exatamente estabelecer o caminho da inteligência, desde o nascimento até a possibilidade do raciocínio abstrato do adulto.
Os estágios do desenvolvimento da inteligência apresentados pela teoria psicogenética são assim denominados: o sensório-motor (da inteligência prática), o operatório concreto (que se constitui inicialmente de uma inteligência intuitiva e depois operatória, baseada na reciprocidade do pensamento) e o estágio formal (quando se pode agir e pensar sob hipóteses e abstrações). Esses estágios talvez sejam o aspecto mais conhecido da sua teoria. Infelizmente, também são fonte de algumas críticas mal fundamentadas ao seu trabalho, como, por exemplo, o fato de que Piaget teria investigado apenas os seus filhos, no caso do estágio sensório-motor, ou que “as crianças de Piaget” eram “meio atrasadas”, uma vez que algumas pesquisas encontram respostas relativas a determinado estágio em crianças com menos idade do que aquelas apontadas por sua teoria.
As provas piagetianas de diagnóstico do nível operatório – instrumentos de pesquisa elaborados pelo autor como método para investigar o nível de desenvolvimento cognitivo da criança – foram replicadas em muitos países e em diferentes estudos, e os resultados dessas investigações são exatamente similares àqueles apontados por Piaget, especialmente no que diz respeito ao caráter sucessivo (e não cronológico) e integrativo dos estágios, porque cada um deles é necessário para a formação do seguinte.
Infelizmente, os estudos de Piaget são tão complexos e influenciaram tanto os conhecimentos na área da psicologia, especialmente a psicologia de desenvolvimento humano e a psicologia da criança, que qualquer tentativa de resumir ou explanar a sua teoria acaba muito aquém da genialidade da proposta do autor. Talvez seja interessante e de grande importância, então, citar o título de três obras do autor: Seis estudos de psicologia (1964), Psicologia da criança (1970) e Epistemologia genética (1970). Tais livros foram uma resposta de Piaget a solicitações que lhe foram feitas para que escrevesse um resumo de sua teoria, a fim de que ela pudesse se tornar mais acessível a um número maior de pessoas. Essa é mais uma prova da notoriedade de sua teoria e do reconhecimento de suas ideias pela comunidade científica e uma grande dica para o leitor que quiser aprender um pouco mais sobre a Teoria Epistemológica Genética.
Piaget e a educação
O objetivo, aqui, é também apresentar ao leitor um Piaget bem mais desconhecido, mas cujas contribuições não podem ser de maneira alguma negligenciadas, num texto que se propõe a apontar a sua teoria como de importância significativa para a compreensão do mundo moderno. Que essas últimas linhas descrevam um pouco do Piaget educador.
Desde a adolescência, Piaget guardava uma preocupação com os valores éticos e acreditava que somente pela educação se poderia regenerar a sociedade. Esse seu empenho humanista pode ser observado nas suas atividades de ensino e em sua atuação em órgãos como a Unesco. Para compreender a evolução do pensamento da criança com relação a valores universais, como respeito e justiça, e suas relações com as regras e a autoridade, Piaget também elaborou estudos de notável importância.
Embora Piaget tenha uma produção menos expressiva nessa área, uma vez que a vasta obra do autor tenha se direcionado para os estudos epistemológicos e cognitivos, também no campo da moralidade, Piaget foi “um poderoso pensador”, pois embora tenha produzido apenas uma obra, O juízo moral na criança (1932), tal livro prestou-se como fundamentação teórica para a maior parte das pesquisas posteriores, como, por exemplo, as pesquisas de Lawrence Kohlberg nos Estados Unidos. Segundo Yves de La Taille, professor da Universidade de São Paulo e prefaciador da edição brasileira do livro, essa obra isolada do autor a respeito da moralidade traz três características ilustrativas do “poder” dos conceitos de Piaget: “a originalidade das pesquisas, a abrangência das análises e a articulação da moralidade com os demais aspectos do universo psicológico”.
Para Piaget, a criança, ao se relacionar com outras crianças e com os adultos, constrói o conhecimento das regras que organizam a convivência com o outro e consigo mesma. O autor explica que a educação moral é fruto das relações que os adultos estabelecem com as crianças, uma vez que os pequenos nascem sem qualquer conhecimento sobre o certo e o errado. Todo ser humano, até os seus 2 ou 3 anos, desconhece as regras morais e, por isso, o autor chamou essa fase do desenvolvimento infantil, em relação ao desenvolvimento moral, de anomia. Entretanto, ele explica que o processo da gênese da moral se inicia com o sentimento de obrigação que a criança desenvolve em relação aos mais velhos, especialmente aos seus pais e professores, pois as crianças pequenas nutrem pelos mais velhos, pais e professores, uma mistura de sentimentos: afeto e temor, a que o autor chama de respeito e que para ele é o sentimento de ingresso da criança no mundo da moralidade.
Portanto, a partir do sentimento de respeito (amor e temor) que a criança pequena sente pelo adulto, ela inicia um processo de imitação das regras recebidas dos outros e utilização individual desses exemplos recebidos, sendo que a fase da anomia é substituída pela moral, que o autor denominou heterônoma, porque dependente das regras e dos modelos dos mais velhos que convivem com a criança. Esse momento se constitui na gênese da moral na criança e pode ser também denominado de moral da obediência. O respeito que a criança sente em relação ao adulto é exatamente o sentimento de obrigação que a leva a obedecer às regras propostas pelos mais velhos, devido à relação assimétrica que estabelece com eles, por isso, esse respeito é chamado unilateral.
É preciso lembrar que o conteúdo básico da teoria psicogenética de Piaget é a ação do sujeito que interage com os objetos, construindo, a partir dessas ações, formas e/ou estruturas de inteligência que lhe permitem, cada vez mais, adaptar-se ao mundo em que vive; o objeto do conhecimento, no que diz respeito à educação e ao desenvolvimento moral, são as regras ou limites. Mas, por se tratar de um conhecimento social, ou seja, aprendido a partir dos exemplos e da orientação recebida dos mais velhos, pressupõe, então, o trabalho educativo.
A questão é que esse trabalho nem sempre é bem realizado pelos adultos. Por um lado, porque a maioria dos adultos nada conhece a respeito do desenvolvimento moral infantil e, por outro lado, porque a maioria dos adultos também é considerada heterônoma, ou seja, embora adultos, ainda dependentes de estereótipos ou outros tipos de motivações externas para agir de forma adequada. O sujeito obediente não é livre para pensar por si mesmo. Não é autônomo.
Dessa forma, a grande novidade que a teoria piagetiana apresenta para os estudos de educação moral diz respeito à moral autônoma. Para o autor, os adultos, reconhecendo o seu papel na formação de personalidades autônomas, deveriam preocupar-se em estabelecer com as crianças relações de respeito mútuo, ou seja, um tipo de relação social que denominou cooperação, que, em substituição às relações de coação, poderia conduzir à superação da heteronomia (moral da obediência).
O Piaget desconhecido pela maioria das pessoas é, portanto, esse homem que se interessou pela educação a partir de sua preocupação com os valores éticos, o que o conduziu a pensar em uma educação da pessoa na sua totalidade, considerando a educação da inteligência e da moral como objetivos indissolúveis e que teriam por função a formação para a autonomia e para a cidadania. O autor pensava que através das relações de cooperação, poder-se-ia educar os povos para viverem em harmonia, compreendendo-se mutuamente e resolvendo seus conflitos através da negação do absolutismo. Em suas palavras:
A ideia que defendemos é bem mais concreta: trata-se apenas de criar em cada pessoa um método de compreensão e de reciprocidade. Que cada um, sem abandonar seu ponto de vista, e sem procurar suprimir suas crenças e seus sentimentos, que fazem dele um homem de carne e osso, vinculado a uma porção bem delimitada e bem viva do universo, aprenda a se situar no conjunto dos outros homens. (Piaget, 1934, em “É possível uma educação para a paz?”)¹
Essas são as palavras do próprio autor, escolhidas para finalizar este texto. Porque a ideia é que, se a expectativa de que este texto cumpra o seu papel de apresentar a importância da Teoria Epistemológica Genética para a compreensão do homem moderno não for atingida, ao menos, que as palavras de Piaget provoquem a perplexidade. Que o convite do autor para a defesa de uma educação que priorize compreensão e reciprocidade, fatores alcançáveis levando-se em consideração a condição necessária mas não suficiente do raciocínio desperto, portanto, do desenvolvimento da inteligência, faça o leitor querer conhecer mais sobre a Teoria da Epistemologia Genética de Jean Piaget.
Luciana Maria Caetano é doutora em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela USP, autora de O conceito de obediência na relação pais e filhos e professora do curso de pedagogia da Universidade São Francisco.
1 - Parrat, S. e Tryphon, A. (1998). Piaget sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo. ( Ariana)