Vigotski, criança e cultura.
Pretendemos lançar algumas reflexões acerca do processo de socialização infantil, estabelecendo um diálogo crítico com as idéias de Vigotski, sobretudo aquelas lançadas em sua obra intitulada “O macaco, o primitivo e a criança – estudos sobre a história do comportamento” datada de 1930. De acordo com a abordagem da escola sócio-histórica russa, a psique humana se forma a partir de uma complexa evolução de três vias, a saber: a evolução biológica do animal ao homem (filogênese), o desenvolvimento histórico-cultural (do primitivo ao moderno) e o desenvolvimento individual (ontogênese). Sendo assim, a criança é física e psicologicamente diferente do adulto, revelando-se como um ser qualitativamente particular. Vigotski, que tem seu pensamento científico marcado pela auto-reflexão crítica permanente, pondera que o adulto avalia a criança a partir de si próprio, numa espécie de cegueira de quem quer ver algo olhando para si. Podemos já neste momento identificar o prenúncio de uma interrogação e suspensão de conclusões definitivas, marca inconfundível da construção teórica viva e desafiadora de Vigotski. De acordo com sua problematização acerca do desenvolvimento infantil, a criança passa por uma metamorfose, uma alteração da forma num sentido mais amplo. Com esta consideração, o psicólogo no alerta para a especificidade do devir infantil. Segundo o autor, “Se nos interrogamos sobre qual é o seu mundo conhecemos também como ele é.”(p133). Neste ponto podemos situar algumas convergências com a teoria freudiana, conhecida e considerada por Vigostki em suas formulações, visto que, para ambos, o princípio de realidade é dado pelo que é externo ao organismo. Vigostki afirma que este princípio da realidade, orientador do comportamento, é, inevitavelmente, social. O domínio e a adequação a este princípio se dão de modo progressivo, durante o desenvolvimento psicológico das crianças, que em suas fases precoces, lançariam mão de uma percepção primitiva e originária no que diz respeito ao tempo e ao espaço.
Nos parece adequado um instante de reflexão acerca da criança construída na teoria de Vigotski, apontando alguns momentos de estranheza que a imagem da infância assume nesta perspectiva. Mais adiante, na trransversalização com outros referenciais teóricos, iremos apresentar algumas problematizações frente às idéias que consideram a criança como um homem ainda não desenvolvido, como um ser que percebe a realidade de um modo primitivo. Como pudemos verificar, estes são pressupostos compartilhados pelo paradigma hegemônico da psicologia cognitiva, com raízes conceituais tanto na psicanálise, como na teoria de Piaget. De acordo com Vigotski, no período compreendido pela primeira infância, o mundo externo seria percebido de um modo primitivo, qualitativamente diverso, sendo a percepção do espaço orientada, em três momentos respectivos, pela boca, pelo tato e pela vista.(p.137) Um breve par~enntese de ve ser introduzido para que possamos compreender Vigotski minimizando o risco de distorções imprudentes. Certamente, por se tratar de uma construção teórica datada de 1930, ela não pôde incorporar as recentes descobertas científicas no âmbito da percepção e cognição de recém-nascidos, tais como a característica transmodal. A transmodalidade da percepção faz com que possamos, desde a mais tenra idade transmitir informações obtidas em um canal perceptivo para outro, como por exemplo, ao visualizarmos um determinado tecido podemos depreender também suas características tácteis. (cf. Bagot). Sem dúvidas, os esclarecimentos trazidos pela atual psicologia cognitiva e seus impactos nos paradigmas psicológicos não podem ser negligenciados.
Contudo, reconhecidas estas limitações da formulação teórica de Vigotski, e conseqüentemente da criança que daí se depreende, esta nos parece sempre inaugural e revolucionária, dada a forma como considera a capacidade imaginativa infantil e sua relação de co-surgimento (co-nhecimento/co-naissance) com o contexto sócio-cultural.
“Ela (a criança) efetivamente vê um pedaço de pau, mas percebe uma boneca, ela imprime aos objetos mais primitivos aquelas qualidades que são determinadas pelo seu desejo, pela sua experiência, pela sua fantasia” (p.140)
Vigotski compartilha, assumidamente, com Freud, da assertiva que a criança, em seus primeiros meses de vida, é um ser a-social e estritamente orgânico, excluído do mundo externo e limitado às próprias funções fisiológicas. O que nos atrai neste pensador, e o destaca da hegemonia da psicologia, é o fato dele considerar como tênues os limites entre a realidade e a fantasia durante a primeira infância, mesmo afirmando que o pensamento infantil obedeça a uma lógica primitiva. A mesma atribuição dos fenômenos psíquicos a seus antecedentes históricos e sociais nos incita a investigar em que medida a substituição do pensamento infantil pelo adulto não consiste em um fenômeno histórico e cultural. Como podemos constatar na passagem que se segue, o teórico estabelece uma hierarquia valorativa entre o pensamento infantil/primitivo e o adulto/moderno.
“O pensamento deve funcionar da forma mais correta possível, não deve destacar-se da realidade, misturar-se à fantasia; todos seus passos devem ser confirmados por uma verificação prática, pouco importando se o fluxo do pensamento é correto quando este supera a primeira verificação, o primeiro encontro com a realidade” (p142).
Tal forma de considerar a percepção pressupõe uma realidade externa e a priori da percepção, assim como do sujeito que a empreende. Apreciamos que este seja um dos primeiros ancouramentos da psicologia a ser reavaliado, caso realmente desejemos investigar o ser psicológico e seu ambiente a partir de uma nova perspectiva. De fato, apesar de Vigotski desenvolver seu pensamento a partir da aceitação de um dos princípios régios da psicologia moderna, insistimos em resgatar o autor enquanto potencial desconstrutor desta mesma psicologia.
Do ponto de vista de Vigotski, o que caracteriza o pensamento infantil é a aglutinação dos elementos que percebe. Fazendo referência a Piaget, Vigotski nos fala de uma falta de rigor nas leis reguladoras e de estabelecimento de relações ordenadas, justificando que a criança não conhece a categoria da causalidade, sendo a categoria do interesse mais familiar. A partir deste raciocínio, observamos no pensar infantil um emparelhamento de impressões singulares. Tendemos, apoiados em outros referenciais teóricos, a experimentar uma suspensão provisória desta afirmativa. Gostaríamos nos ater um pouco sobre este ponto de distanciamento com Vigotski, visto que o consideramos como fundamental para a compreensão do fenômeno que pretendemos abordar. Sem o intuito de suavizar nossas ressalvas, devemos destacar o contexto histórico e o estado de arte da psicologia a partir do qual Vigotski elaborou sua teoria. Alguns dos resultados de testes que apresenta na obra referifa foram extraídos de aplicações em crianças de até 08 anos, provavelmente não incluídos em um sistema pré-escolar, (p155), e acabam por revelar ao autor uma criança ainda incapaz de distinguir a causa da conseqüência. Acreditamos, e confirmamos esta hipótese a partir de investigação psicológica sistematizada própria, que a criança na primeira infância, bem mais precocemente que supomos, já é capaz de estabelecer diferenças e relações entre causas e efeitos, sobretudo se ela já se encontra em ambiente pré-escolar. Vigotski afirma que “o pensamento relacional é produto de um alto grau de desenvolvimento cultural” (p157). Compartilhamos desta hipótese, porém avaliamos que a criança já esteja inserida neste pensamento relacional desde o início de sua existência (biológica e social), sem que esta seja antecedida por uma fase primitiva. A lógica da criança é diferenciada, mas nem por isto primitiva ou ainda não evoluída. A ausência de contradições e a coexistência de raciocínios opostos, apontados por Vigotski, não se configuram, a nosso ver em uma imperfeição a ser superada. É valiosa a descoberta de Vigotski, de que na representação da criança uma coisa pode agir sobre outra independente da distância, do tempo e da total falta de relação. Esta é a positividade do pensamento e da fantasia infantil, território de transformação de experiências individuais, familiares e culturais. O autor nos fala de um pensamento mágico, capaz de correlacionar eventos ou estímulos contemporâneos. Por um outro lado, o pensamento do homem civilizado, em oposição ao primitivo, seria um conjunto harmonioso. A partir desta ótica, a criança só seria inserida no mundo social a partir de uma passagem caracterizada pela inibição das funções primitivas e elaboração de formas complexas de adaptação. Tomaria lugar a superação:
“inserindo-se no seu ambiente, a criança inicia logo a se transformar e a mudar: isto acontece muito cedo porque a situação cultural já pronta cria nela determinadas formas de adaptação que a muito foram criadas pelos adultos que a rodeiam” (p 168)
Partamos da afirmação de Vigotski de que “a criança atravessa determinados estágios de desenvolvimento cultural caracterizados por diferentes modos e relação da criança com o mundo externo” (p216). Este mundo externo é cultural e está lá desde a criança, e mesmo antes desta, visto que suas famílias e seu ambiente de vivência lhe pré-existiriam. Vigotski não trata de uma cultura pré-estabelecida, ele nos chama a atenção para a cultura que se produz quando um ser infantil age e participa de sua elaboração e transformação. O momento da primeira infância seria marcado por uma intensidade e por um modo próprio de se agenciar com as subjetividades circulantes, o que Deleuze enuncia como “devir-criança”. Este afirma que a criança conhece sem mapa, e que
”o trajeto se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e o percorrido”
Dispomos de vias de problematizar a cultura e a infância no próprio Vigotski, quando este enuncia o desenvolvimento cultural de funções específicas, a saber: memória, atenção, abstração, linguagem e pensamento. De acordo com o psicólogo, a memória consistiria na plasticidade natural do aparelho psico-nervoso, processando-se enquanto a passagem de uma forma natural de memória (criança) para uma cultural (adulto) – utilização de novos métodos e de sinais auxiliares. Já atenção, se configura como a organização do comportamento na formação de uma orientação correspondente que prepara o sujeito para a percepção ou ação “se não existisse a função orientadora o homem não teria condições de receber racionalmente os estímulos ambientais, de distinguir os mais dos menos importantes e responder adequadamente” (p189). Vigotski segue em seu modelo explicativo, considerando a atenção natural seja involuntária enquanto que a artificial seria cultural, voluntária, se caracterizando como um comportamento elaborado. Estímulos culturais, criam pseudo-necessidades, a abstração passa a ser indispensável ao pensamento, constituindo-se como um dos instrumentos mais potentes que o desenvolvimento cultural inculca na psique humana. Acompanhando o pensamento piagetiano, ele concorda que a capacidade de abstração numérica se enuncia como o refinamento máximo da abstração. A partir destas considerações, Vigotski é enfático ao destacar que o pensamento e a linguagem têm raízes distintas e podem existir, um sem o outro, nas fases precoces do desenvolvimento. O pensamento antecede a linguagem. Esta última, por sua vez, é justamente a convergência de reação sonora e pensamento. Seguindo Vigotski e realizando uma cronologia histórica do desenvolvimento, podemos detectar um primeiro período de uso sensato da linguagem marcado pela palavra-frase. Progressivamente e por saltos bastantes evidentes, é possível constatar uma súbita incrementação do vocabulário, marcado pelo enriquecimento deste e pela invenção das palavras. Neste momento, o pensamento se torna verbal. De acordo com Vigotski, a linguagem inaugura um novo modo de se relacionar com o ambiente:
“transferindo-se do externo ao interno a linguagem forma uma importantíssima função psicológica que representa em nós o ambiente externo, estimula o pensamento e coloca as bases para o desenvolvimento da consciência” (p215)
Temos sido conduzidos, nesta busca de um diálogo entre o pensamento de Vigotski com um novo paradigma de compreensão da infância contemporânea, a reproblematizar a relação entre criança e cultura, procurando não considerar a entrada na linguagem pela via do domínio do verbal como o momento de passagem do natural para o cultural de uma forma ativa. A cultura, e mesmo a linguagem são o ambiente natural da criança e gostaríamos de propor que esta é, inevitavelmente ativa, produtora e transformadora da subjetividade circulante. Deleuze nos fala de uma criança cartógrafa, que tece uma trama que indistiingue o real e o imaginário, como afirma este pensador:
“Desse ponto de vista, não parece que o real e o imaginário formem uma distinção pertinente. Uma viagem real carece em si mesma da força para refletir-se na imaginação; e a viagem imaginária não tem em si mesma a força, como diz Proust, de se verificar no real. Por isso o imaginário e o real devem ser antes como que duas partes, que se pode justapor OU superpor, de uma mesma trajetória duas faces que não param de intercambiar-se, espelho móvel”(p 75)
Como avançou Vigotski, “entre a criança e a realidade se insere um mundo intermediário semi-real, porém bastante característico – o mundo do pensamento egocêntrico e da fantasia.” (p.147).
Nosso objetivo ao lançar estas reflexões inacabadas é chamar a atenção para alguns aspectos do pensamento de Vigotski que, agenciado compreensivamente por outro campo paradigmático, como aquele proposto por Deleuze, podem lançar luz acerca de suas próprias problematizações. Acreditamos que a obras de um pensador se enriquece na releitura e n na reapropriação que pode será sempre mediada por uma inaigural perspectiva de apreciação do fenômeno que se contempla. Acatando a recomendação de Vigotski, nos convencemos que
“O Homem é um ser social e as condições sócio-culturais o transformam profundamente desenvolvendo uma série de novas formas e procedimentos no seu comportamento. Um estudo atento desta particularidade constitui a tarefa científica da psicologia” (p225)
Bibliografia
Deleuze, G. O que as crianças dizem, in Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997. 173 p.
Vygotskij, L. S., Lurija A. R. La scimmia, l’uomo primitivo, il bambino – studi sulla storia del comportamento.Firenze: Giunti Barbera, 1987. (256p)